Um trecho do livro Carma: o que é, o que não é, e sua importância, de Traleg Kyabgon
[...] o raciocínio fundamental por detrás do carma é que ele opera de acordo com o relacionamento de um ser vivo com os outros. É assim que o carma funciona. É o efeito sobre nós e os outros que determina se uma ação é positiva ou negativa, e não a ação em si. Mais uma vez, precisamos ter cuidado com esse ponto. Não devemos pensar que podemos fazer o que quisermos porque parece positivo. A teoria cármica gira em torno da preocupação com o que realmente promove o nosso próprio bem-estar e o dos outros. Se algo é certo ou errado é uma questão secundária; o foco principal é se o ato é benéfico ou prejudicial. Fazer o que é carmicamente benéfico nos faz felizes, e fazer o que é carmicamente prejudicial nos torna infelizes, a longo prazo. A teoria cármica acomoda o interesse próprio neste respeito. Devemos nos preocupar com nós mesmos e pensar sobre o que de fato nos beneficiará, e devemos refletir sobre isso seriamente.
A noção de equanimidade é importante em relação ao nosso interesse próprio, porque, por um lado, o carma é criado devido aos nossos hábitos, e permanecer calmo e atento é reduzir o impulso de nosso comportamento impensado. Essa é a primeira abordagem fundamental para o cultivo mental no budismo, a pacificação do pensamento desenfreado. Isso reduzirá os nossos hábitos negativos, aqueles que sempre reforçam os hábitos já existentes. Mas também há o aspecto de cultivar o carma positivo, pouco conhecido no Ocidente, onde, tipicamente, quando pensamos no carma em algum momento, em geral é no seu aspecto negativo, como parte do nosso aprisionamento no samsara, e, portanto, como algo de que temos que nos livrar ou reduzir o mais rápido possível. Ao adotar essa atitude, toda a ideia de cultivo do carma é ignorada. Tradicionalmente, porém, o budismo considera o aspecto negativo do carma como resultado de uma falta de desenvolvimento. Nosso comportamento é governado pelo pensamento desenfreado, sem reflexão; nós agimos em um estado distraído por hábito, quase inconscientemente. Ao ver o outro lado da questão e aprender a cultivar o carma, lidando com os hábitos com os quais precisamos trabalhar, nos tornando mais reflexivos, o carma adquire um conceito libertador. Quando novos pensamentos emergem em nossa mente, surgem dentro de um certo estado mental. Eles criam raízes e prosperam ou diminuem e perecem, de acordo com nosso cultivo de pensamentos benéficos. Na verdade, esses hábitos positivos, ativamente encorajados e estimulados, também têm o potencial de deixar de ser apenas hábitos.
Sem dúvida, é desejável que possamos progredir até um ponto em que cada vez menos carma seja criado, porque mesmo o carma positivo, do ponto de vista budista, é incapaz de produzir total liberação. Qualquer carma é uma amarra. Mesmo ao criar carma positivo não ficamos realmente livres, mas certamente somos mais livres do que ao criar carma negativo. Nós só temos que olhar exemplos de nossas próprias vidas, por exemplo, quando estamos bravos com alguém. Nós nos sentimos, de alguma forma, presos numa dinâmica, e a maneira como tudo se desenrola parece ser restritiva. Em um tipo de relacionamento baseado na bondade amorosa, em contraste, surgem diversos tipos de possibilidades; a interação não está tão estruturada. Nesse tipo de relacionamento, podemos nos expressar de formas muito diferentes; é algo fluido e, portanto, tem menor capacidade de formar hábitos. Como sabemos, relacionamentos negativos tendem a ser extremamente rígidos. A briga da noite passada reinicia idêntica pela manhã; surgem as mesmas palavras e os mesmos gestos: “Você disse isso!”, “Não, você disse isso!”. Às vezes, podemos até ouvir o que está por vir antes mesmo que seja falado! Nós sabemos exatamente como a discussão irá evoluir. É como um ensaio. A negatividade é, portanto, formadora de hábitos, e é rapidamente incorporada. Nós ficamos enredados na nossa própria confusão.
A técnica budista para contrapor essa propensão, além de cultivar a equanimidade, consiste em pensar deliberadamente sobre coisas que em geral não pensamos, ou sobre coisas em que, na maioria das vezes, não desejamos pensar. Ao treinarmos ter pensamentos mais saudáveis, permitimos que as emoções e os sentimentos apropriados se desenvolvam. Por exemplo, um pensamento simples como “meu parceiro é uma pessoa agradável” evoca um sentimento caloroso em relação a ele. Pensamentos dessa natureza têm um efeito cumulativo que nos afasta do hábito de pensar de forma negativa. Além disso, ao expressarmos nosso amor uns pelos outros, nos sentiremos menos obrigados a seguir uma espécie de roteiro definido. Nós não precisamos dizer: “Eu te amo como te amava desde o princípio!”. Não há nenhum roteiro. Nós realmente nos tornamos mais espontâneos, tentando coisas diferentes. Essa é a verdadeira marca da positividade. De um modo geral, sempre que pensamos em algo bom ou positivo, não se forma um hábito da mesma forma que ocorre com o pensamento negativo, que é extremamente formador de hábitos. O pensamento negativo é muito estreito, estruturado, asfixiante e restritivo. As emoções e os sentimentos positivos são expansivos e nos levam para além de nós mesmos, enquanto que os sentimentos negativos penetram em nós. Mesmo quando nos expressamos de uma forma violenta, que é uma expressão aparentemente externa, o sentimento está bloqueado dentro de nós; mas quando nos sentimos felizes, não precisamos expressá-lo, já está exposto.