Foto de Dennis Jarvis

Podemos ter aspirado por uma interrupção em nossas vidas diárias - mas nos nossos próprios termos.

por Helen Tworkov, 28 abril de 2020
Texto publicado originalmente na Tricycle, em 28/04/2020


Estou no meio do nada: em uma casa de fazenda afastada no final de uma estrada de terra na área rural do Cabo Breton, Nova Escócia. Vim dirigindo desde a cidade de Nova Iorque, junto com uma amiga, chegando aqui no dia 19 de março, com dois gatos, sacolas de grãos e lentilhas, uma bolsa térmica repleta de legumes cozidos e uma dúzia de rolos de papel higiênico. O deque ao redor da casa está coberto de gelo e escorregadio. Como não quero arriscar um tombo, fico em pé na soleira da porta da frente, tomando um pouco de ar fresco. Daqui posso ver o celeiro, sitiado pelo gelo. Dentro dele está meu carro. Isso não é um problema, já que estou de quarentena; mas as condições da estrada de terra, agora que estamos na estação da lama, me asseguram que o meu auto isolamento vai durar bem mais do que o período obrigatório. A temperatura flutua entre um pouco acima e um pouco abaixo do ponto de congelamento, transformando a neve da montanha em pequenos riachinhos, que escorregam até o mar, mais abaixo da casa - não sem antes formarem pequenas poças na estrada, com suas trincheiras insuficientes. Lama, buracos profundos e gelo negro frequentemente tornam a estrada intransitável. Contrariando o bom senso, levamos o carro até a minha casa – não subindo pelo caminho íngreme e comprido, ainda coberto de neve, mas para mais abaixo, tendo, depois, que subir com as compras e os gatos assustados por um caminho estreito de cascalho, que havia sido limpo por um vizinho, com seu quatro por quatro. Minha amiga voltou para Nova Iorque alguns dias depois e eu acabei de me instalar, protegida, no meu lugar.


Mais ou menos uns dez dias antes de deixar Nova Iorque, eu tinha reagido às noticias sobre o coronavírus tratando de abastecer a casa e me mantendo, a maior parte do tempo, separada dos meus amigos, sozinha em um apartamento de um só cômodo no Chelsea. Mesmo assim, saia durante uma hora por dia, por vota das 7h da manhã, para caminhar por ruas relativamente vazias, dando bom dia aqui e ali para as pessoas do meu prédio. O isolamento, aqui na Nova Escócia, é total. Meus pés têm tão pouco uso que poderiam muito bem estar
pregados no assoalho. Mas a minha mente divaga, e, com bastante frequência, volta-se para o meu professor, Mingyur Rinpoche, que se encontre agora no Nepal.


Esta intensa restrição de movimentos tem me feito pensar sobre o retiro andarilho de Mingyur Rinpoche. Durante quatro anos e meio ele viveu em peregrinação, como um iogue sem teto, abandonando a proteção da sua residência monástica para vagar pelo mundo, dormindo em cavernas nos Himalaias ou em templos rurais das planícies do Ganges. Ao familiarizar-se com a prática de pousar em qualquer lugar, pôde aprofundar sua compreensão de pousar aonde se está, e foi capaz de explorar os níveis mais profundos de refugio e do "voltar para casa em si mesmo”.

Algumas semanas depois de sua partida, a experiência de Mingyur Rinpoche de alimentar-se esmolando por comida acabou levando-o a uma grave infecção intestinal que o deixou próximo da morte. No outono de 2015, pouco depois de ter retornado ao seu monastério no Nepal, fui fazer-lhe uma visita. Naquela época, ele pediu minha colaboração para escrever a respeito de sua experiência de quase-morte e sobre tudo o que havia aprendido com ela. Queria apresentar sua estória pessoal dentro do contexto mais amplo dos ensinamentos tibetanos clássicos sobre o viver e o morrer, também conhecidos como ensinamentos de bardo. Este livro foi finalmente publicado em maio de 2019, com o título de “Apaixonado pelo mundo: a jornada de um monge pelos bardos do viver e do morrer”.

Enquanto tentava descobrir de que modo começar o livro, fiz a ele muitas perguntas sobre sua motivação para realizar um retiro de sem teto. Eu me perguntava o que é que tinha levado aquele monge, que fora criado como um príncipe do dharma, paparicado como se fosse uma orquídea de estufa, a abrir mão de uma cama confortável, de comidas favoritas e de chuveiros quentes. Ele tinha dado as costas para todo o prestígio e o privilégio de que gozava como um brilhante professor do dharma e, de certa maneira, precoce abade; tinha abandonado seus títulos, seu trono e seus atendentes - tudo com o objetivo de, deliberadamente, convidar o desconforto, a desordem, o medo, a incerteza e o anonimato para dentro de sua vida.

Assim como aquela indesejada infecção intestinal, a disrupção de estilo de vida também manifestou os ciclos do bardo da morte, do morrer e do renascer; neste ponto, Mingyur não estava trabalhando apenas com a ameaça ao seu corpo, mas com a preciosa morte do ego. Como seu pai, Tulku Urgyen Rinpoche, já havia lhe dito muitas vezes, este aspecto do nosso ser - o sentido convencional de identidade que é regido pelo consenso e que se identifica com os pensamentos e emoções, status e reputação - este ser precisa morrer, antes que possamos renascer para a maturidade espiritual. Esta é a morte que Mingyur Rinpoche cortejava, ao abraçar a falta de teto e uma vida que ninguém jamais havia imaginado para ele.

Quem, entre nós, já virou a própria vida de cabeça para baixo na busca do despertar? Quem já abandonou tudo aquilo que lhe era familiar e confortável? Quem é capaz de sair pela porta de casa sozinho, sem dinheiro, sem comida, sem celular, sem ninguém para recolhe-lo, quando as águas ficam revoltas?

Quando o livro foi publicado, muitos leitores manifestaram sua admiração estarrecida pela jornada de Mingyur Rinpoche. E também sua inveja. Eles também haviam desejado fazer algo assim, mas... tantos “mas”: Nos Estados Unidos você não pode simplesmente perambular sem acabar morrendo de fome, congelando até a morte, ou sendo preso por vadiagem. Ou, sou um/a dono/a de casa e tenho obrigações com meus filhos ou meus pais; ou, posso oferecer mais ao mundo permanecendo nele do que o abandonando. E assim por diante. Tantos e tão compreensíveis “mas".

Quando perguntado como é que nós, enquanto alunos, poderíamos interromper nossa falta de consciência habitual, a qual rege grande parte do nosso dia-a-dia, Mingyur costuma responder que cada um de nós habita padrões que podem ser quebrados - ciclos repetitivos de reatividade emocional, de corner ou usar substâncias de modo compulsivo, ou de entreter hábitos pouco saudáveis de fala.

Dispomos de infinitas oportunidades para explorar estas lições sem precisarmos fazer o que ele fez. Ele nos aconselha a descobrir os nossos próprios limites e, então, empurra-los - por exemplo, aumentando a carga de peso de 2,5 para 5 quilos, e não de 5 quilos para 100, da noite para o dia. Ele também não tinha ido dos 5 para os 100. Sua mudança para uma vida de andarilho errante fora um passo gigantesco, mas não dos 5 para os 100, porque ele já conhecia o alcance do seu próprio treinamento e confiava na capacidade da sua consciência plena de ultrapassar, por fim, aqueles mesmos obstáculos que quis buscar para fortalecer sua
compreensão.

Em que medida qualquer um de nós deseja verdadeiramente aquele grau de disrupção que Mingyur tinha arranjado para si mesmo? Com qual frequência nós - eu mesma e as outras pessoas que conheço - já confessamos entreter fantasias de acidentes de carro, acidentes de escalada ou doenças que nos levassem próximos da morte, não por conta de tendências suicidas, mas pelo desejo de renascer, de sermos sacudidos para fora da nossa complacência, libertados das nossas camadas de auto-engano por uma força que não somos capazes de reunir aqui dentro? Ou, na falta da energia e da dedicação de um Bodhidharma - que permaneceu sentado, olhando para uma parede, durante 9 anos - imaginamos passar uma temporada na cadeia, acreditando que o confinamento iria, certamente, mobilizar nossa busca pela liberação?

Agora a disrupção foi magnificada. Doença e morte, impermanência e incerteza. Medo. Pânico. O mundo de cabeça para baixo. Nada é sólido. O centro não se sustenta. Nada faz sentido. O tapete foi puxado de debaixo dos nossos pés e nosso mundo está em queda livre. O meu mundo. Somos capazes de nos permitir a experiência da dissolução, de morrermos para o que conhecíamos, de permitir que nossas ideias a respeito do mundo morram? E de renascermos de maneiras que não podemos nem visualizar nem prever?

Aqui neste lugar não tenho televisão. Apenas leio as manchetes das noticias na web, faço chamadas de Zoom, continuo fazendo minhas práticas de meditação diárias, participo de atividades de dharma online, faço a prática de dar e receber [tonglen] e passo os olhos em dúzias de textos bem-intencionados, todos os dias. Amigos em Nova Iorque entopem meu celular com imagens, a maioria delas de ruas vazias. Às vezes, algum cachorro. Em todo lugar a palavra incerteza é repetida com a insistência de um mantra, como se essa mera repetição fosse capaz de sugar para fora todo o medo que evoca.

Eu ouço o medo de morrer; ouço o medo dos hospitais, especialmente de amigos da minha geração, cuja idade apenas poderia desqualifica-los para receber atenção médica, se houver restrição de suprimentos. Ouço que as pessoas acreditam que têm mais medo de morrer agora do que tinham antes da pandemia. E me pergunto se isto será mesmo verdade. Ouço que aprender a viver com a incerteza não se assemelha mais a um conselho sábio, mas a uma maldição do corona.

Qual é a alternativa - sentar e ficar rezando para as coisas voltarem ao normal - esquecendo, convenientemente, que antes da pandemia também tínhamos medo da incerteza, da impermanência e da morte? Com muita frequência, estes medos não são sequer reconhecidos - mas agora eles estão nus. Esta é a oportunidade que a disrupção nos oferece, como a disrupção que Mingyur Rinpoche trouxe para si mesmo ao deixar sua casa e como a disrupção que resultou de seu esbarrão com a morte. Talvez esta seja realmente uma oportunidade de nos tornarmos confortáveis em relação à certeza da impermanência; e de ver se conseguimos permanecer com o nosso medo e o nosso pânico, permitindo que estas perturbações se acomodem no seu devido lugar, em nossos corpos e mentes, bem ao lado da ternura, da tristeza e da preocupação com os outros. Não alimenta-las, mas apenas senti-las, sem fugir correndo atrás das manchetes.


Rá! Imagino meus amigos em Nova Iorque dizendo, Fácil para você fazer amizade com a incerteza, segura aí, no topo da sua montanha, olhando as vistas amplas do céu e do mar. Pois é, estou sabendo. Mas, por favor, não minimizem minha própria necessidade de oferecer ajuda. Permitam-me usar minha situação afortunada para lembrar que a negatividade nunca se encontra nas circunstâncias externas a nós - nem mesmo dentro de uma pandemia - mas em como nos relacionamos com elas. Será que eu iria me lembrar disso tudo se ainda estivesse em Nova Iorque, ouvindo as sirenes e assistindo aos necrotérios improvisados pela minha janela, ouvindo os vizinhos sussurrarem sobre a escalada do vandalismo e sobre as entregas que foram roubadas da frente dos prédios? Ou se eu tivesse membros da minha família trabalhando nas linhas de frente? Não sei. Ainda assim, aqui estou eu, grata por poder estar neste lugar, protegida em um local que permite que os ensinamentos reverberem verdadeiramente, em alto e bom som.

Um rapaz chegou em seu quatro-por-quatro para manobrar meu carro para fora da garagem. A neve já derreteu o suficiente para podermos sair. Depois de quatro semanas dentro de casa, não vejo a hora de dirigir até a cidade para comprar legumes frescos. Ele deixa o carro ligado recarregando a bateria e volta ao celeiro para puxar a rampa e reajustar os portões e as portas. Dou um passo para o lado de fora, oferecendo a ele um sorriso e um gesto de positivo com o polegar para cima. Nós já nos acomodados às regras do distanciamento social. Do outro lado do pátio o rapaz grita: Você não vai conseguir sair hoje. Melhor esperar mais uns dois ou três dias de tempo seco.

Que decepção. Tanto por não poder sair, quanto por perceber o quão facilmente me esqueço de que nada é mesmo certo e que a ilusão da certeza é sempre uma armadilha para o desapontamento.

Helen Tworkov


Helen Tworkov é editora-fundadora da revista Tricycle e autora de Zen in America: Profiles of Five Teachers (1989), Ela é também co-autora dos livros Transformando Confusão em Clareza: um guia para as práticas fundamentais do budismo tibetano (2014) e Apaixonado pelo Mundo; a jornada de um monge pelos bardos do viver e do morrer (2019). os quais escreveu juntamente com Yongey Mingyur Rinpoche.


Tradução: Claudia Roquette-Pinto
Revisão: Luis Fernando Machado








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